ODONTOLOGIA EM CRISE: HORA DE MUDAR

Nos preocupa que a Odontologia, em todo o mundo,  tenha perdido seu caminho

Somos um grupo de cientistas experientes, pesquisadores, acadêmicos e intelectuais, de várias partes do mundo, com mais de 250 anos somados de experiência de trabalho com o objetivo de melhorar a saúde bucal. O grupo é inteiramente independente de qualquer instituição, órgão governamental ou entidade empresarial[1].

Nós nos reunimos por alguns dias em março de 2017 sob a hospitalidade do Professor emérito Alfonso Escobar em sua casa de campo nos Andes da Colômbia, conhecida como La Cascada, para compartilhar nossas preocupações sobre o futuro dos cuidados com a saúde bucal e da educação em  Odontologia. Cada um de nós preparou, com antecedência, um documento detalhado sobre nossas experiências ao longo do último meio século, a nossa avaliação dos problemas atuais e elaboramos sugestões para o caminho a seguir. Cada documento foi discutido em detalhe[2]. A declaração que segue apresenta nossa análise do problema e fornece algumas recomendações sobre o que deve ser feito.

O Problema

Apesar do conhecimento atual das causas das doenças da cavidade bucal, a maioria das pessoas no mundo continua experimentando níveis significativos de doenças e impedimentos. Embora os avanços tecnológicos e científicos dos últimos 50 anos tenham contribuído para  melhorar a qualidade de vida de alguns, as doenças da cavidade bucal continuam causando dor, infecção, perda de dentes e miséria para um grande número de pessoas. Se por um lado, em muitos países com renda per capta média e alta a melhora na saúde bucal é notável​​, por outro, as desigualdades em saúde bucal, tanto entre os países quanto dentro deles, constitui agora um problema maior. A melhora generalizada na saúde bucal tem sido atribuído muito mais à melhoria nos padrões e condições de vida, mudanças nas condutas sociais (melhorias na higiene pessoal e redução do tabagismo) e no uso generalizado de cremes dentais com flúor, do que às  intervenções clínicas realizadas pelos cirurgiões dentistas.

Em escala mundial, a profissão tem tido pouco impacto direto sobre a dimensão do problema. As intervenções clínicas representam apenas uma pequena proporção na melhora da saúde bucal das populações. Isto é tão verdadeiro para a saúde bucal quanto para a saúde geral.

O mundo tem testemunhado um crescimento significativo nas desigualdades sociais entre ricos e pobres, o 1% mais rico possui mais da metade da riqueza mundial, com apenas oito homens e segundo a OXFAM, possuem a mesma riqueza que a metade da população do mundo. As políticas de austeridade em todo o mundo (comumente denominadas por “programas de ajuste estrutural no Sul global) têm desviado as despesas sociais e de bem-estar do setor público para o setor privado na convicção de que “o mercado” pode satisfazer as necessidades sociais, apesar das evidências contrárias. Isto levou à criação de um serviço de saúde de dois níveis: um para os ricos, e o outro, limitado e muitas vezes de pior qualidade, para a maioria.

Em muitos países, empresas e companhias de seguros estão, cada vez mais, assumindo a prestação de serviços de saúde, incluindo serviços odontológicos. Os protocolos de tratamento que oferecem são concebidos mais para assegurar rendimentos adequados de investimento para os seus acionistas do que para melhorar o estado de saúde da comunidade, resultando numa tendência para o fornecimento de tratamentos excessivos e por vezes inadequados.

Estamos temerosos pois, com o declínio no financiamento público para as universidades, a pesquisa está perdendo a sua independência, já que cada vez mais se busca apoio financeiro na indústria, como por exemplo, nos fabricantes de materiais farmacêuticos, cirúrgicos, odontológicos, equipamentos,  produtos cosméticos e para higiene, fato que distorce  as prioridades das pesquisa e dos procedimentos clínicos.

As principais empresas de alimentos e bebidas continuam promovendo o consumo de carboidratos refinados, de açúcares livres em bebidas, confeitaria e em alimentos processados, mesmo que estes sejam os principais fatores que contribuem  para a cárie dentária, para não mencionar obesidade e diabete. As propagandas desses produtos frequentemente e sem justificativas asseguram benefícios para a saúde.

Nós acreditamos que a odontologia, da maneira  como está atualmente constituída, capacita de forma inadequada seus profissionais para lidar com os problemas de saúde bucal enfrentados pela população. Em muitos países, há uma superprodução de cirurgiões dentistas, a maioria dos quais prestam serviços apenas nos principais centros urbanos onde a prática privada é mais lucrativa e os serviços muitas vezes não conseguem atingir aqueles em áreas mais remotas do país. Em alguns casos, a superprodução resulta em desemprego.

Embora não haja dúvida de que a intenção da profissão é melhorar a saúde, os protocolos de tratamento comumente utilizados para a cárie dentária (preparos cavitários e restaurações) e para as doenças das periodontais (raspagem e polimento) não são capazes de controlar a progressão das doenças. Além disso, as restaurações colocadas nos dentes resultam inevitavelmente a um ciclo de substituições das mesmas por outras de tamanho cada vez maior, diminuindo  em última instância a vida da dentição.

Os cirurgiões dentistas são remunerados ou avaliados com base no número de procedimentos realizados e não por  restabelecer ou promover a saúde. No setor privado, os cirurgiões dentistas estão sob constante pressão para garantir retornos adequados sobre o investimento e frequentemente, isto resulta em sobre tratamento.

As duas doenças mais comuns na boca, a cárie dentária e as doenças periodontais, são reversíveis e na maioria dos casos podem ser controladas pelos próprios indivíduos e pelas comunidades utilizando  medidas simples. O progresso da cárie dentária pode ser paralisado, mesmo em dentes com cavidades abertas e quando não há comprometimento pulpar. Utilizar cirurgiões dentistas que foram treinados por cerca de 4-6 anos para realizar estas medidas tão simples, parece inadequado, exceto quando as doenças se encontram em estados avançados.

As doenças dos tecidos moles da boca e das estruturas ósseas dos maxilares são debilitantes e às vezes fatais. A prevalência de câncer de boca e da garganta continua aumentando em ritmo alarmante em algumas populações e; às vezes, com atenção inadequada pelos profissionais.

Estudos de populações que têm pouco ou nenhum acesso aos cuidados odontológicos mostram que, apesar da má higiene bucal, muitas pessoas conservam a maioria dos seus dentes durante grande parte da vida. A cárie dentária é a principal razão pela qual os dentes necessitam ser extraídos e os cirurgiões dentistas são os responsáveis pela perda de dentes como resultado do ciclo de restauração acima mencionado.

Observa-se  um crescimento preocupante de especialidades na odontologia, evidenciando uma tendência na realização excessiva de  tratamentos, muitas vezes inadequados. Por exemplo, mais da metade de todos os tratamentos endodônticos fracassam. Certas especializações, onde há muitas oportunidades lucrativas, estão transformando cirurgiões-dentistas em esteticistas. Muitas das especializações são baseadas em estimular o desejo de consumo das pessoas que então justificam a necessidade das  intervenções baseadas em “responder à demanda”.

A odontologia está à deriva, ao que parece, longe de sua tarefa de prevenção e controle da progressão da doença e da manutenção da saúde. A boca tornou-se dissociada do corpo, assim como os cuidados com a  saúde bucal separou-se da medicina geral.

Nós acreditamos que a odontologia está em crise e isso deve mudar.

O que precisa ser feito?

Uma vez que as intervenções clínicas representam apenas uma pequena proporção das melhorias alcançada na saúde, a odontologia deve estar na vanguarda dos esforços que requerem  para reduzir as disparidades de renda e a busca de um mundo mais justo no qual todos tenham acesso aos recursos e às condições necessárias para se obter boa saúde e bem estar geral. As indústrias cujos produtos são prejudiciais para a saúde, especialmente os que produzem  açúcares livres em alimentos e bebidas, e os que produzem alimentos que contêm carboidratos refinados, devem ser obrigados a rotular os seus produtos como prejudiciais à saúde (tal como tem sido feito em muitas partes do mundo em relação ao tabaco e ao álcool). O declínio nos gastos públicos no setor social não pode ser justificado à luz de gastos excessivos com guerra, militares, armas e outras iniciativas destrutivas. Não podemos permitir que as  empresas e as indústrias influenciem indevidamente a pesquisa ou a prática clínica.

Os cirurgiões dentistas  são sobre-treinados para o que eles fazem e sub-treinados para o que eles deveriam estar fazendo.

O controle das doenças bucais mais comuns requer relativamente pouco treinamento e poderia ser realizado, na maioria dos casos, por agentes comunitários de atenção básica à saúde. A demonstração sobre a eficácia dessa abordagem deve ser comprovada.

Com o excessivo número  de cirurgiões dentistas  na maior  parte do mundo, há uma necessidade urgente de uma reavaliação da formação deste profissional.

A odontologia deve se tornar uma especialidade da medicina, assim como a otorrinolaringologia, oftalmologia e a  dermatologia são especialidades da medicina. Como tal, os médicos da boca seriam responsáveis por liderar equipes de saúde bucal, na atenção das doença avançada e na prestação de cuidados de emergência, alívio e controle da dor, infecções e a sepse, trauma, diagnóstico e tratamento das  patologias dos tecidos moles  e, quando justificado ​​do ponto de vista da manutenção da saúde, realizar intervenções para restabelecer a função da  dentição  e reconstrução orofacial. Uma vez que o tratamento e o controle das doenças mais comuns poderiam ser realizados por agentes comunitários de atenção básica à saúde, seria necessário a formação de um número relativamente pequeno desses médicos da boca. Além disso, seria necessário um número relativamente pequeno de cirurgiões dentistas de saúde pública para coordenar as avaliações de necessidades em saúde bucal, implementar e avaliar estratégias comunitárias de melhoria da saúde bucal e atuar como defensores da saúde bucal para assegurar uma maior integração da saúde bucal em políticas mais amplas.

O aumento dos cursos de especializações na odontologia, tem com  resultado uma  prática lucrativa para o especialista, no entanto, tem feito pouco pela saúde bucal pública. Esse crescimento deve ser limitado.

É preciso haver mais discussão pública sobre as sucesso e limitações na forma como a odontologia está atualmente estruturada.

As implicações das recomendações acima são óbvias: mudar de cirurgiões dentistas para médicos da boca exige uma revisão completa do perfil da educação das faculdades de odontologia: uma revisão do currículo atual desenhado para a formação de cirurgiões dentistas; uma redução do número de profissionais e melhorar a  qualidade dos cursos, especialmente orientados  para garantir que a formação do profissional esteja ligada às necessidades da população. Inevitavelmente, isso significará o fechamento de muitas das faculdades de odontologia existentes nos países que criaram um número assustador de novas faculdades na última década. As propostas de abertura de novas faculdades de odontologia deveriam ser seriamente reavaliadas.

Entretanto, é preciso esforços para  desencorajar os cirurgiões-dentistas e outros profissionais de saúde bucal para realizarem procedimentos (tais como preparo cavitário  e restauração e, raspagem e polimento) que reduzem a vida da dentição. Tais procedimentos devem ser limitados à situações  excepcionais em que a restauração para restabelecer  a função justifique o risco. Cirurgiões dentistas precisam ser recompensados ​​pela manutenção da saúde ao invés de realizar procedimentos invasivos e muitas vezes desnecessários. As intervenções relacionadas à saúde bucal devem ser determinadas pelo interesse em se alcançar a saúde e uma dentição funcional, e não pelo interesse financeiro de profissionais em práticas privadas  ou acionistas de empresas e companhias de seguros.

O estado atual da odontologia em todo o mundo é grave e requer soluções radicais. Esta breve declaração foi produzida para estimular a discussão sobre o que precisa ser feito pela saúde  bucal da maioria dos seres humanos. Reconhecemos que as mudanças podem levar algum tempo para serem implementadas. Cada país terá de avaliar a melhor forma de fazê-las.

Dr Lois Cohen PhD (USA)—lkcohen1@verizon.net

Dr Gunnar Dahlen PhD, Professor Emeritus, Odont (Sweden)— gunnar.dahlen@odontologi.gu.se

Dr Alfonso Escobar, Professor Emeritus, Doctor Honoris Causa (Colombia)— aescobar@ces.edu.co

Dr Ole Fejerskov PhD, Professor Emeritus, Odont (Denmark)— of@biomed.au.dk

Dr Newell W Johnson, Professor Emeritus , CMG Professor Emeritus, FMedSci (Australia) — n.johnson@griffith.edu.au

Dr Firoze Manji, PhD — fmanji@mac.com (Kenya/Canada)


  1. O professor Richard Watt não pode participar da reunião na Colômbia, mas enviou o seu documento e contribuiu  para esta declaração
  2. Os textos completos estarão disponíveis em breve em https://lacascada.pressbooks.com

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The Future of Oral Health Copyright © 2017 by Lois Cohen, Gunnar Dahlen, Alfonso Escobar, Ole Fejerskov, Newell Johnson and Firoze Manji is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License, except where otherwise noted.

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